novembro 15, 2011

Tsunami literário




Por Terciane Alves - Revista Língua Portuguesa Edição 70





A influência brasileira para o escritor angolano valter hugo mãe (assim, em minúsculas) é tamanha que ele parece viver um tipo de encantamento quando por aqui. As paisagens, pessoas e músicas que captou do país lhe são combustível para a criação. Talvez por isso escreva de improviso e é de forma espontânea que encanta o público de suas palestras. A espontaneidade lhe conferiu simpatia calorosa em Paraty, na Festa Literária Internacional, mês passado. Autografou, numa tarde, 400 exemplares de A Máquina de Fazer Espanhóis (Cosac Naify), que lançou após uma das conferências mais elogiadas da Flip. hugo mãe cresceu em Portugal. É vocalista do grupo Governo, artista plástico e letrista. Visitou o Brasil pela primeira vez há dez anos, tutelado pelo escritor Marcelino Freire. Considerou aquele um momento de absorção cultural para ele, que cresceu vendo telenovelas, ouvindo música brasileira e fascinado por vizinhos brasileiros que enriqueciam seu imaginário. Para José Saramago, é "tsunami literário": lê-lo era ver "um novo parto da língua". hugo mãe reconhece que experimentar a língua é aprendizado diário, com muito a ser feito. Nascido em Saurimo, em 1971, é advogado, pós-graduado em literatura portuguesa. Criou quatro romances e quatro infantis. Emociona-se com facilidade, demonstra curiosidade sobre tudo o que lhe contam, mas não perde o misto de ironia e gentileza. À Língua, conta da frustração dos autores africanos. E admitiu: o português do Brasil é a grande influência em sua obra.


O escritor angolano Valter Hugo Mãe radicado em Portugal, que já foi chamado por Saramago de 'tsunami literário', conta que o seu estilo vem da influência dos escritores brasileiros.

*Qual a questão que mais o intriga na variante brasileira da língua?
Além de me intrigar, aquilo que mais me instiga e agrada é o linguajar índio das línguas que existiam no Brasil. Você caminha pelas ruas e vê nomes indígenas por toda parte. E imagina quantos sítios indígenas haviam. O português brasileiro é mais permissivo, menos ortodoxo. Permite experimentações.

*Como foi viver no Brasil?
O Brasil vem sendo uma marca na minha formação e uma experiência cultural desde menino, por causa de toda a informação que chega em Portugal por meio das telenovelas e da música. A literatura chega menos, chegam alguns clássicos. A telenovela chega todos os dias, e muitas. Quando conheci Marcelino Freire, eu me sentia uma esponja para absorver tudo - eu devia ter uns 28 anos na época. O Marcelino, imediatamente, me rodeou de outros nomes que apareceriam mais tarde, tornando-se referência, como Evandro Afonso Ferreira e Marcelo Mirisola. Eu o conheci (Marcelino) por acaso. Antes de vir ao Brasil, resolvi colocar na internet uma mensagem dizendo que gostava de conhecer escritores, pessoas ligadas aos livros. E o apelo deu muito certo.

*De que maneira o Brasil influenciou a sua obra?
Tem um pouco que ver com esse fascínio do despudor da língua. Sendo português e escrevendo no português característico de Portugal, faço muita deturpação, às vezes embargação, mas faço muita experiência, tento experimentar um pouco. Dar muita atenção ao modo como as pessoas falam é algo muito típico dos escritores brasileiros. Faço sempre essa experiência e, certamente, essa é uma influência de escritores brasileiros.

*Como vê a condição do autor lusófono na África?
É um sofrimento. Uma tristeza. A África é um continente encurralado. Há uma muralha muito difícil de transpor. Me parece que os escritores africanos são vistos como aquela cota obrigatória a que se deve cumprir para minorias, como em empregos e vagas nas universidades. Poucos conhecem e têm condições de ir ao pé dele (do continente africano) e ver a beleza da obra dele. O que acontece com alguns escritores africanos é que estão muito disponíveis a preencher essas cotas e outros ficam recônditos, porque a África é um continente recôndito. Muitos escritores não vivem na África, estão na Europa, em outros países. Falta abrir uma oportunidade de a África se mostrar a partir de onde ela está, sem precisar se deslocar. Há escritores escondidos em Portugal, como o Luandino Vieira. Há um mais novo chamado Vilmar, o Valdir Silva. O Valdir Silva escreve contos.

*A literatura perdeu a relevância cultural?
A relevância dela é absoluta. Falo isso como escritor, de como ela é importante para a compreensão do mundo. E para perceber um assunto de forma mais profunda. De maneira muito lúdica, vejamos a importância que têm os livros para as crianças. É utópico pensar que o livro vai mudar o mundo. Mas se acontecer com uma pessoa, acredito que os livros podem ter uma relevância cultural muito grande. Estive na Ilha da Madeira para pesquisas sobre A Máquina de Fazer Espanhóis. E conheci o pessoal de um ateliê de arquitetura. Todo o ateliê estava a ler o livro, pois o dono o fez como tarefa, mas eles estavam a gostar muito. Estavam a projetar um abrigo. E a refazer o projeto, pois, no meu livro, desaconselho a criar abrigos para idosos perto de cemitérios. E o escritório estava revendo isso junto à construtora, mudando o local da obra. Compensa-me muito pensar que a história que conto tenha algo de extrema verdade. Algo capaz de interferir num projeto desta maneira.

*Numa passagem do livro, esse personagem de 84 anos, o Silva, se refere a ele e ao Silva da Europa. Ser Silva representaria duas condições no mundo?
Sim, há essa condenação de os portugueses serem Silvas. Em Portugal, as silvas são aquele mato agreste, essa coisa que cresce selvagem e se alastra no lugar mais agreste, capaz de superar dificuldades. O mato é robusto e algo rasteiro. Nasce um povo robusto, capaz de superar dificuldades, mas ao mesmo tempo rasteiro. Ninguém cai nas silvas porque as silvas têm espinhos. Uma espécie de planta rasteira, agreste, que tem uma condição, uma oportunidade de sair da pequenez. Portugal é um país que desenvolve um sentimento de perda muito grande. Mesmo que não seja verdade, as pessoas têm a sensação de que estamos mais pobres de alguma coisa. Os Silvas são duas plantas rasteiras. Um sonhando com, mas sem oportunidade, uma coisa presa, muito infeliz com seus próprios remorsos.
"É utópico pensar que o livro vai mudar o mundo. Mas se acontecer com uma pessoa, acredito que os livros podem ter uma relevância cultural muito grande".

*Me parece que entre os portugueses há um sentimento de alijamento em relação à Europa.
Acham que a Europa começa na Espanha. Isso aparece um pouco no meu primeiro romance. Quando era pequeno, minha mãe dizia que além das arvores estava a Espanha, para que não nos entrássemos mata adentro. O que era uma mentira terrível, pois a Espanha ficava a mais de 100 quilômetros. Achávamos que nosso país estava confinado àquela vila. Até que um dia alguém soltou um cavalo e havia algo na cabeça da pessoa que estava no cavalo que reluzia e achávamos que era um rei da Espanha e voltamos muito histéricos para casa, dizendo que o rei iria querer reaver as suas propriedades. Os portugueses costumam ter expectativa além da linha. Como se tivéssemos essa estranheza de não corresponder a nada mais da Europa. As pessoas (de Portugal) até falam: "Lá na Europa". Somos europeus, fomos criados europeus. Mas é uma coisa intrincada, como um labirinto de espinhos.

*O Silva de 84 anos sai da depressão quando um amigo diz que o Esteves que está no abrigo é o do poema Tabacaria, de Pessoa. Ali começa a sentir o orgulho de sua condição portuguesa. É assim a alma lusitana, ter mais orgulho da autoimagem literária do que do concreto? Ou da sua história?
Os portugueses são muito céticos. Tudo é ironizado. Os colonizadores não só de Portugal, mas da Espanha, creio, são assim. Há uma violência contida com relação aos povos que encontra. E por isso ninguém tem essa ideia cega de glorificar uma coisa tão contraditória, tão ambígua quanto foram as descobertas (portuguesas). Mas há uma espécie de identidade que vem muito da arte, da literatura, da música. Durante os anos 80, sofreu-se muita retaliação. As gerações novas queriam muito desprezar o fado por conta desse sentimento triste e entristecedor, mas na verdade muito genuíno. Esse sentimento, sendo embora triste e entristecedor, vem muito de dentro de Portugal, ainda que queiramos ser de outro modo. Como se fosse impossível deixar de ser quem somos. Claro que há pessoas felizes, que dançam samba e sabem até dançar. Mas não há como fugir de certos sentimentos, como o fado faz parte, o Fernando Pessoa faz mais parte ou a maturidade do coletivo. O que sonho para o meu país é que as pessoas sejam mais crentes, que acreditem, sonhem mais. E sejam mais confiantes.

*Para criar o personagem que vai para um abrigo, você acompanhou ou inseriu-se num abrigo?Não. Trabalhei para me sentir um senhor de 84 anos. A primeira vez que ouvi falar do poema Tabacaria tinha uns 8 anos. E fiquei chocado quando a professora leu o trecho que fala de um homem sem metafísica. Achei que Fernando Pessoa foi mal criado com ele, mas guardei isso pra mim. Adoro Pessoa, mas nesse livro a arma de um crime, não à toa, é um livro. Pensei comigo, vou roubar esse personagem para devolver a metafísica a ele. A completude da vida se dá quando estamos apaziguados e o Silva redescobre um modo de viver sua terceiridade, algo que meu pai não viveu. As relações mais fortes são as que precisam que nos afastemos. Alguns dizem que foi a crise econômica que motivou o romance, outros falam da morte de seu pai. Não diria a crise, mas um acumular de tudo. Vou roubando um pouco de tudo o que leio sobre o que escrevi. Alguns fazem uma leitura mais política de meus livros e a usam para acusar a política; outros vão à esteira de pensar a terceiridade, pois, de fato, muitos da minha geração não terão ninguém para assegurá-los. E há a visão poética, de a amizade como um tipo de amor, mesmo não físico. De fato, penso que a família é quem escolhemos para sermos fiéis. O livro parte dessa ideia de pensar como seria a vida desse homem mais velho que eu. Sabia que ia ocupar o espaço do meu pai com um livro. Ele morreu aos 59 anos. A perspectiva da morte fez com que criasse um apaziguamento com o que ele é. Vivia a queixar-se de tudo e, quando soube que tinha uma doença grave, mudou, passou a cuidar melhor dele, da família, de mim.

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