fevereiro 06, 2009

By myself (again)

Da velha casa azul

Foi há muito tempo. Do ônibus, me perdia entre a paisagem que lá fora seguia seu rumo. O trânsito impedia os veículos de seguir caminho. Nunca soube explicar porque determinadas coisas “insignificantes” me chamam atenção, mas observando a rua comecei a reparar numa velha casa. Ela parecia semi-abandonada com a pintura descascada, janelas mal cuidadas, um portão antigo e enferrujado, além de muitas tralhas amontoadas no quintal. Não me lembro qual música o fone soava em meu ouvido mas, naquele momento, ela certamente contribuiu para ilustrar a cena de forma mais intensa. Não era uma casa qualquer e ali haveria de ter algo especial. A velha casa de um azul desbotado, feia e misteriosa me trouxe uma melancolia que não era minha e que eu não sabia explicar. Fiquei imaginando que tipo de gente moraria ali e tracei o perfil daqueles que logo habitaram minha mente: seriam essas pessoas também desbotadas pela vida, amargas e tristes? Viajantes que ali se alojavam em busca de uma vida melhor nesta selva de pedras? Imaginei homens velhos e barbudos, mal vestidos e solitários. Naquele mausoléu só haveria de morar gente assim! Perdida nesse enredo inútil (afinal, que importância tinha isso?) e me sentindo culpada pelo pré-conceito inconsciente e repentino notei que, da calçada, uma menininha se aproximava. Era uma garotinha de uns 8 anos, de cabelo preso e com um pacotinho na mão. Seu jeito alegre e infantil contrastava com a melancolia da casa e roubou minha atenção. Ela, em seu mundinho particular, não notava o trânsito, não via os carros nem percebia as pessoas ao redor. Caminhava num ritmo quase saltitante, alegre e descontraída, como se estivesse no bosque de um conto de fadas. Seu cabelo cintilava de um lado a outro, como pés de bailarina. Parecia tão feliz e absorvida em sua caminhada que eu não consegui despregar os olhos dela. Agora, além da casa, outra personagem tomava conta do cenário. Será que mais alguém percebia o que acontecia nessa rua? Tentei observar o que os passageiros do ônibus faziam. Ninguém reparava na casa, nem tão pouco na menina. Cada qual se ocupava de coisas reais: liam jornal, reclamavam do trânsito, conversavam ou simplesmente se fechavam em pensamentos, por certo mais palpáveis que o meu. Era como se, numa fração de segundos, diferentes mundos se cruzassem: aquele somente visto por mim e o que era verdadeiramente real e pertencia aos passageiros do ônibus. Mas, antes que eu continuasse delirando nesse enredo imaginário, o inusitado aconteceu: a menina, linda e radiante, com aquele pacotinho de Miojo na mão, parou em frente à casa azul. Abriu o portão e entrou. Continuou sua caminhada pelo quintal com a mesma alegria contagiante. Aquela casa feia, desbotada e triste era seu castelo encantado e ali ela era feliz. Naquele mundo que a mim parecia tão deprimente. Menina e casa pertenciam uma à outra, e isso era real. Por um instante, senti algo estranho, uma mistura de surpresa. Lembro-me de ter esboçado um leve sorriso. O trânsito voltou a circular e o ônibus seguiu seu rumo. A velha casa azul acompanhou meus pensamentos, e a menina cujo rabo de cavalo dançava um balé mudo, mas cheio de ritmo, também. Por algum motivo, nunca mais esqueci disso. A garotinha já deve estar moça e feliz (espero!) como a mim parecia ser. A casa continua lá exatamente como antes: azul, desbotada, com ar de abandono. E causando o mesmo sentimento estranho toda vez que a vejo.

*A casa azul existe. O fato descrito realmente aconteceu, faz muito tempo. Há meses passei em frente a essa casa e me espantei ao notar que ela continua exatamente igual. Velha, azul e desbotada. Nada mudou. O texto, que na verdade é um email, eu escrevi pro meu amigo Vinicius com quem sempre compartilho cores (mesmo que desbotadas) e sabores (inclusive os amargos).
;o)

6 comentários:

Anônimo disse...

revelador, nao achas? ;-)

beijocas,

Vinícius

Anônimo disse...

Uma bela crônica, de uma jovem e bela paulistana.

Parabéns!!

Adriano Queiroz disse...

"A velha casa azul acompanhou meus pensamentos, e a menina cujo rabo de cavalo dançava um balé mudo, mas cheio de ritmo, também.", que imagem maravilhosa.
As "crianças" tem este poder de dar cor ao lugares mais ermos.
Muito bem escrito, se todo e-mail que eu recebesse fosse tão belo assim, yahoo, gmail, hotmail e tantos outros tornariam-se bibliotecas virtuais.
Parabéns!!!

Otávio disse...

q bonito! em especial, gostei qdo chegou aqui: "Aquela casa feia, desbotada e triste era seu castelo encantado e ali ela era feliz"
Parabéns!

Anônimo disse...

Lígia, falando bem sério: vc já pensou em reunir seus textos e enviar para apreciação de alguma editora?
Sei do que estou falando...

Besos del Bispito
P.S. gracias pelo post!

Lígia Pin disse...

Não Bispo... nunca pensei nisso, até porque eu (de fato) nao escrevo e nao tenho "textos" (no plural) para reunir. Entende? hahahahaha Mas obrigadinhu, tá?
;0)