janeiro 26, 2009

By myself

Hoje inicio uma sequência de postagens inéditas. Para cada dia da semana uma nova surpresa, assinada por diferentes amigos - dentre os que toparam se expor aqui no blog. Cada um mostrando um talento, uma vontade, um dom, um repente. Pra começar, lá vai o meu texto.
;o)

Peixes frescos

(google imagem)

Acordou com desejo. Era sempre assim quando estava feliz. Abriu a janela e o sol banhava em ouro a paisagem da cidade. Ajeitou-se olhando no espelho e passou o batom ainda intacto da cor do sangue que lhe corria nas veias. Saiu levando a sacola de compras a esbanjar um bem estar como nunca sentira antes. “Peixes” - decidiu. Há tempos que não os preparava e o dia pedia algo especial. “Peixes” - repetiu baixinho enquanto se dirigia à peixaria da esquina. Apreciou a vitrine fria com um suspiro profundo de satisfação. As peças estavam viçosas, chamando atenção. Peixes frescos. Decidiu por uma porção generosa que o atendente tratou logo de separar.
Uma gota que escorria pela vitrine fria acompanhou um súbito arrepio em seu corpo. Peixes frescos. O atendente pesava cada peça com paciência e desenvoltura. A balança rangia. Olhava com um sorriso acanhado, mordeu o canto dos lábios. “Peixes frescos era o que papai mais adorava”. O rapaz retirava cada peixe ao som de um novo rangido e colocava-os sobre o papel de embrulho. “Ele sempre queria peixe aos domingos, mas nem sempre mamãe conseguia economizar o suficiente para comprá-los”. Ela esperava pelo embrulho com a respiração ofegante. “Talvez devesse comprar batatas, papai adorava batatas”. Entregou o dinheiro à caixa e sentiu o estômago arder enquanto a moça contava lentamente o troco. Peixes frescos e batatas. “Naquele dia mamãe não conseguiu deixar o prato no ponto, como ele gostava. Algo saíra errado. Fora o tempero? Talvez sal em excesso, ou as cebolas queimadas". Não conseguia lembrar. “Se comprasse batatas, tomate, cebola e salsa, ficaria como papai queria”. A sacola pesava com o embrulho gelado e úmido. Os peixes frescos dariam uma saborosa refeição. "Sim, cebola e salsa, mas não podia passar novamente do ponto”. Isso era o mais importante: respeitar o “ponto”. Seguia pela rua em silêncio. Nunca soubera explicar o que sentiu quando ouviu o grito repentino. O cheiro do peixe abafava qualquer tentativa de raciocínio. “Pouco tempero, dizia papai”. Pouco tempero para não sufocar os peixes frescos. A faca, velha e enferrujada que cortara os peixes e as batatas de repente levava consigo folhinhas de salsa banhadas num tempero grosso e escarlate. “Algo saíra errado e papai não perdoara. Ele havia avisado sobre o tempero, não era homem de repetir ordens." O tempero continuava a escorrer pelo chão da cozinha, grandes gotas carmim. Nunca ninguém entendera o ocorrido. “Mas era uma família tão calma”, diriam tempos depois. “E adoravam cozinhar peixes”. “Mamãe nunca mais teria que preparar nada. Peixes frescos, jamais”. Ao dobrar a esquina seu pensamento ardia como o sol que banhava a cidade. Abriu a porta de casa e entrou, sem nada nas mãos. A sacola de compras fora deixada na rua, jogada num cesto de lixo público. Os peixes? Estavam frescos demais.

Ligia Pin
Jan/09


10 comentários:

Marcelo Maluf disse...

Oi Lígia,
Indiquei o seu blog para o prêmio dardos, dá uma espiada lá no meu labirinto para saber mais!!!
Abração
Marcelo

Anônimo disse...

ui.

Adriano Queiroz disse...

Família, sangue e alimentos. Bons elementos para uma tragédia universal.
Eu gostei.

Abraços.

Otávio disse...

mto bem escrito, me lembrou do conto "olhar" do livro "romance negro" do rubem fonseca, mas gostei do fluxo de consciência..

fab disse...

Você sabe preparar peixe mesmo ou teve que pesquisar? porque no meu caso teria que entrar na wikipédia pra saber pra que serve um tempero, rs...
texto bacana, e a comparação com o "olhar" do romance negro é válida, tão noir quanto...
Vou ler outros textos seus...
bjs..

Leo|mascaro disse...

Muito bom o texto!!
Ótima descrição com ricos detalhes!!

Começou a semana com o pé direito! =D

Anônimo disse...

Simplesmente ótimo!
E absolutamente necessário!

BB

Renata Nakano disse...

Com já disse, revelador! ; )

V R L disse...

estou com a Nakano!

:-)

beijos

V R L disse...

Fui ler isso novamente e vi o banho de sangue... humanos ao molho pardo!

bjs sem sangue (só aqueles que nutrem as células da boca que beija)