novembro 30, 2011

A imperfeição da leitura



Por Lucas Colombo

Unhas pintadas, óculos de lentes coloridas, camisetas de cores habitualmente berrantes. Falante e de humor largo, o poeta Fabrício Carpinejar tem uma figura que costuma gerar estranhamento por onde passa. O gaúcho de Caxias do Sul tem no "jeitão" uma forma de provocar o diálogo com o leitor e, assim, aproximá-lo de sua poesia, mantendo uma relação mais despreocupada com o gênero. "Para ler poesia, não é preciso estar de férias", diz.

Carpinejar tem 15 livros, como Cinco Marias (2004) e Meu Filho, Minha Filha (2007). Blogueiro, professor e colunista do jornal Zero Hora, acaba de lançar seu 16º livro, Borralheiro (Bertrand Brasil). Na coletânea de crônicas, aborda a atual condição do comportamento masculino. A crônica é um gênero ao qual Carpinejar tem se dedicado. Canalha!, por exemplo, recebeu o prêmio Jabuti de 2009 e Mulher Perdigueira (2010), o Açorianos de Literatura, oferecido pela Secretaria de Cultura de Porto Alegre. Além de poemas e crônicas, sua produção comporta aforismos, que publica diariamente em seu Twitter, com mais de 106 mil seguidores. Esses aforismos também já viraram livro, batizado com seu endereço on-line: www.twitter.com/carpinejar (2009).

As reações negativas a Borralheiro, pelo fato de reunir crônicas que não são inéditas, o afetaram?
Reações negativas me pautam positivamente [risos]. A diferença é que, no blog, não se pode ver a sequência, o eco, a redundância dos textos. No livro, trabalha-se a unidade: temática, de estilo, de ritmo, de imagens. Certas crônicas caem fora justamente porque acabam empobrecidas perto de outras. O livro se faz colocando tudo no chão, formando uma tapeçaria de crônicas. E, aí, vai-se varrendo... Nesse processo, não há texto que não seja modificado. Todos são editados, ou retrabalhados. Temos uma ideia de que internet é a pressa de publicar. Não: o fato de estar na rede faz a gente caprichar pontualmente. Ao publicar crônica no blog, vou mexendo aqui e ali. Se deixamos um texto "na gaveta", não o mexemos tanto quanto na internet.

Há mercado para a poesia?
Existe. É choro de coitadinho não admitir que um livro seja bom e venda. É algo que humilha, constrange... A inveja compartimenta as coisas: "é isso, ou aquilo". E, na verdade, é tudo muito simultâneo. Há bons autores contemporâneos que têm prestígio na crítica e vendem bem, como Milton Hatoum e Cristovão Tezza. Se tu vais usar essa "lei", use para todos. Não só para teus desafetos...

A literatura vem perdendo seu papel na cultura?
Não, pelo contrário. Até porque a literatura está mais presente no cinema e na TV. Não perdemos espaço, somamos espaço. Hoje, poetas e escritores são mais "mediadores". Nunca houve tantos seminários, feiras e bienais do livro... As próprias redes sociais despertam interesse por literatura. Só pelos links que recebe, a pessoa já lê mais. Atualmente, há mais facilidade para trocar afinidades. Se tu gostas de um artista, é mais fácil compartilhar esse gosto. As redes têm aprofundado o conhecimento. As pessoas são mais espelhadas, hoje, no texto. O jovem está mais interessado em ler.

Entusiasta das possibilidades abertas pela internet, o escritor gaúcho lança livro de crônicas e afirma que não há receitas que levem a uma boa leitura

Como aproximar a poesia do leitor contemporâneo?
Com uma revolução inversa. A publicidade, por exemplo, passou a usar poesia. A poesia tem de invadir o espaço da publicidade. E desafiar as aparências. Ela faz a gente não se ajudar. Faz nadar melhor no desespero. É o avesso da autoajuda, que quer consolar sem fazer pensar muito. A poesia faz mergulhar na dúvida. E encontrar o riso no choro. É a única maneira de sair do choro, aliás. As pessoas acreditam precisar de tempo para ler. Mas se tu separas livro para ler nas férias ou para quando ficares doente, é para não ler. Leitura é feita assim: de maneira cortada, aos saltos, imperfeita como a vida. Procuramos a leitura perfeita, por isso ela não acontece. Não tem de estar de férias para ler poesia. Aceite que não precisa ler o livro até o fim, se não gostar dele! Livro não é estudo: é empatia, afinidade. Podes não gostar dele num momento e, em outro, gostar.

Seu "jeitão" busca dessacralizar a poesia?
Sou comunicativo. Corro o risco de ser rejeitado. Isso é bom. E, com jovens, tenho a possibilidade de ser mais bem aceito. Porque acaba sendo uma isca: eles pensam que estou provocando, mas estou produzindo. A literatura precisa ser tão enérgica e irreverente quanto a música. O livro é um palco, e não precisa de cortina. A cortina é educada. O problema é que, às vezes, acham que sou louco... [risos]. Tenho método, disciplina, organização. Sou tudo menos louco, pois sei voltar.

Concorda com a frase "poesia é o que se perde na tradução"?
Concordo sim. Poesia é ruído. É essa transposição impossível: o leitor nunca terá direito à ilha, mas ao mar que liga duas ilhas, que são o tradutor e o poeta. Esse mar é muito mais potente, pois a tradução é feita para preservar o silêncio da outra língua. O momento certo de calar, de se retirar. Não é feita para preservar a palavra. Isso é difícil.

Entre a poesia portuguesa e a brasileira, quais as diferenças marcantes?
Filosofia. A portuguesa é mais contemplativa, conversa mais com o ensaísmo. E a brasileira é mais sonora, mais rítmica. É uma "poesia-dança".

Quais as vantagens do idioma português para a versificação?
O português tem exuberância. É para ser domado. Uma língua de rodeio: tem de sentar no touro e permanecer o máximo de tempo. Coisa de caubói, de laçador. Tem muitos polissílabos, conjugações verbais, palavra com quatro ou cinco significados... É difícil ser culto sendo coloquial. É muito fácil ser corrompido pela fala, pela escrita. Para mim, é a língua mais difícil. Se analisarmos o espanhol, vemos que tem mais possibilidades que o inglês. Mas o espanhol precisa ainda ser ampliado. E o português precisa ser reduzido.

Qual sua opinião sobre a lei gaúcha que pretendia limitar o uso de estrangeirismos?
A lei representava um zelo excessivo. Subestimava a própria cadeia alimentar da língua: rejeitar e aproveitar o que é necessário. Há termos que caem em desuso, viram jargões técnicos... E seria tão feio usar "sítio", em vez de "site". Precisaríamos fazer uma reforma agrária digital [risos]. É muito difícil saber, hoje, a língua portuguesa. O escritor tem mais capacidade de errar o idioma porque ele o usa muito mais. Acredito em saber dançar a língua portuguesa. Já é difícil caminhar com ela...

Aceita a ideia de "preconceito linguístico"?
Não. É preciso tê-lo. Uma língua se faz de preconceito linguístico! Se mudar as regras, como se vai saber jogar, brincar? Mudando as regras do esconde-esconde, não tem mais esconde-esconde. É preciso ter normas. Queremos ser tão politicamente corretos que deixamos de ser conservadores. A língua é para ser conservadora! Para conservar inclusive o coloquial. "Se tu separas um livro para ler nas férias ou para quando ficares doente, é para não ler. A leitura é feita assim: de maneira cortada, aos saltos, imperfeita como a vida. Procuramos a leitura perfeita, por isso ela não acontece"

Você dá aula de formação a produtores e roqueiros. Como vê a diferença entre poesia e letra?
São processos distintos. Se bem que Chico Buarque confundiu essa distinção entre letristas e poetas... [risos]. Há letras dele que sobrevivem sem a melodia da canção. E também Caetano Veloso, Cartola, Noel Rosa... São casos isolados, e nem sempre acertaram, mas não podemos fundamentar por exceção. A letra de música não precisa se explicar, se ampara na própria melodia. Pois melodia já é letra; já sugere se é alegre ou triste. A literatura, não: mantém muito mais a ambiguidade. A letra não quer que tu não a entendas. Penso assim: quando o silêncio é muito forte, é literatura. Na música, o silêncio é mais curto. Na poesia, a melodia é a palavra. A música tem um sentido mais comunicativo, mais generoso. Não é preciso entrar nela para entendê-la. Já na poesia, tem de entrar. Não há como olhar de fora. A diferença é grande.

Você se considera parte da tradição de humor da literatura brasileira?
Meu humor é mais poético. É um humor diferente, mais delicado. O do Gregório de Matos, por exemplo, é mais veemente. O de Machado de Assis é sarcástico. Já o meu é o da situação. E gosto de trabalhar o esgotamento de um ponto de vista. O humor que consegue ser alegre e melancólico ao mesmo tempo.

Você tenta evitar o linguajar gaúcho? "Você" em vez de "tu"...
Nem preciso usar o "tu", de tão gaúcho que sou! [risos]. Tenho uma crônica em que digo ser irresistível, para a mulher, ver homem carregar saco de carvão [Estratégias de Sedução]. Mais gaúcho que isso, não dá. Mas acredito que, falando aqui do Estado, falo para o Brasil. Falo do RS, não termino no RS. É meu ponto de partida.

A crônica de costumes é tipicamente brasileira?
A crônica norte-americana é muito mais longa. Flerta com o ensaio, como a inglesa. Mas isso é mais regrado pelo espaço no jornal e na revista, do que por escolha do cronista. Aqui, o pouco espaço gerou uma virtude: o cronista se habituou a escrever menos, a ter resolução de contista. Porque não é para jogar futebol de salão. Acaba tendo uma intensidade, um raciocínio rápido, que é algo a ser retardado numa crônica dos EUA. Aqui se resolve tudo logo.

Por que o Twitter é ferramenta de poeta?
Pela densidade e por desfazer aparências. É a arte do desaforo. Twitter é tremor; é o quanto tu podes fazer o outro tremer. É o aparentemente fácil que complica. Uma frase de duas mãos: enquanto tu vais, estás voltando. Twitter não é para cantar, é para desafinar.

Saramago disse que o Twitter representa a "tendência ao monossílabo" e, de degrau em degrau, desceríamos "ao grunhido"...
Ah, não... De degrau em degrau, vamos é subir até o gemido. [risos].



Publicado na Revista Lingua Portuguesa - Edição 69

2 comentários:

Andresa disse...

Eu queria ser amiga dele! rss
E do Lenine também!
Beijo, feiosa

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.